Os reveses nas experiências de consumo de pessoas com deficiência
Militantes na luta por melhor qualidade de vida e garantia dos direitos das pessoas com deficiência, como a médica Daniela Bortman, se reuniram na ACSP para falar sobre acessibilidade
"Quando seus produtos e soluções são acessíveis, funcionam para a deficiência permanente, temporária, situacional e para quem não tem deficiência. E isso é mais que acessibilidade, é usabilidade".
A fala de Ricardo Wagner, diretor de trabalho moderno e segurança na Microsoft Brasil, diz muito sobre as oportunidades que os lojistas têm para aprimorar seus negócios. Filho de uma mãe parcialmente cega e tendo um irmão amputado, o executivo está bem contextualizado com a falta de poder e visibilidade dessa população na sociedade.
Um exemplo simples do que Wagner fala está nas lojas de roupas, que não são pensadas para tornar as jornadas de consumo de pessoas com deficiência mais autônomas. Raramente essas lojas oferecem provadores mais espaçosos que comportem uma cadeira de rodas, um atendente que se comunique por meio da Língua Brasileira de Sinais, ou prateleiras acessíveis a um cliente com nanismo ou cadeirante - mesmo tudo isso sendo previsto por lei.
O mesmo vale para as praças de alimentação, que devem estar em locais de fácil localização e oferecer mesas acessíveis, mapas táteis e elevadores próximos.
Além de tudo o que precisa ser feito, Wagner destaca que oferecer acessibilidade não é criar áreas exclusivas para pessoas com deficiência, mas sim ambientes que atendam de fato a todos.
O Brasil tem 18,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8,9% da população, segundo dados da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (SNDPD/MDHC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mundo, esse número chega a um bilhão de pessoas.
Pensando nas barreiras que vão além do espaço físico, o Comitê de Civismo e Cidadania (COCCID), da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), organizou um seminário para discutir acessibilidade e visões estratégicas para a construção de um universo de negócios que contemple toda a diversidade humana.
Lançando um olhar ainda mais amplo sobre a questão, os depoimentos que foram dados durante a reunião deixam clara a importância de reconhecer essa população como um mercado de consumidores ativos. Uma pesquisa do Sebrae-SP mostra que 50% das pessoas com deficiência são economicamente ativas, ou seja, trabalham como funcionárias ou empreendem. Deste total, metade trabalha de 30 a 50 horas semanais e 1/3 atua no setor industrial.
Parte de um recorte bem seleto dessa realidade, Daniela Bortman está há três anos na Bayer, onde é head de saúde, e está entre os 5% de pessoas com deficiência que ocupam cargos de liderança em grandes empresas do país.
Desde 1991, uma lei de cotas exige que toda empresa no Brasil com cem funcionários ou mais tenha de 2% a 5% dos seus cargos preenchidos por pessoas com deficiência (PCDs). A Bayer, por exemplo, que hoje tem 300 PCDs entre seus funcionários, tem programas de desenvolvimento para acelerar a ascensão de grupos sub-representados.
Daniela é a primeira médica tetraplégica do Brasil, e teve dificuldades de retornar à faculdade dois anos após sofrer o acidente que a deixou com restrições motoras. Ela relata que desde então teve de se esforçar duas vezes mais do que os outros para ocupar os espaços em que queria estar, porém, não se sentia bem-vinda.
“As pessoas esperavam que eu ficasse bem, mas na cama, aposentada, não sendo médica. No máximo, me diziam que eu poderia ser psiquiatra. Apesar de admirar a especialidade, não era o que eu queria”, diz Daniela.
A partir daí, passou a entender que inclusão de fato não significa atender a uma lei de cotas ou contratar PCDs. Mas, sim, reter e proporcionar ambientes de trabalho seguros e saudáveis ao normalizar a diversidade.
Daniela tem uma assistente pessoal na Bayer, uma profissional da área da enfermagem que a ajuda tanto nas tarefas profissionais quanto pessoais, como se vestir ou comer. Uma condição, de fato, privilegiada, mas que na visão da executiva, não pode ser vista como um ato de bondade da empresa, e sim, como uma relação saudável entre empregada e empregador.
É essa mesma assistente quem a acompanha nas compras, um momento que ainda lhe traz constrangimento. Isso porque, na maioria das vezes, Daniela diz que as atendentes das lojas a ignoram por estar em uma cadeira motorizada e se dirigem diretamente a sua assistente.
"Como se eu não pudesse ser diretamente atendida ou não tivesse domínio para saber o que quero. E há ainda quem me trata como criança, se comunicando sempre no diminutivo e com uma voz infantil", diz.
O mesmo tipo de experiência é compartilhado por Bruno Pereira, head de acessibilidade e consumo inclusivo na Gol Linhas Aéreas, e que tem baixa visão.
Além de reclamar da abordagem infantilizada que recebe no comércio e de quase sempre ter o atendimento direcionado à sua namorada, não a ele, Bruno também diz se sentir depreciado.
"Me trazem itens mais baratos ou me colocam na condição de quem não teria poder aquisitivo para pagar por coisas mais caras. Sem falar nas vezes em que me expulsaram da loja por achar que eu estava lá para pedir dinheiro".
Bruno está há nove anos na companhia aérea e já teve diversas experiências profissionais no comércio de rua trabalhando em padarias, pequenos varejistas, atacadistas e distribuidores, e por isso conhece bem os dois lado, o de consumidor e o de responsável pela criação e gestão de programas de diversidade e inclusão de colaboradores com deficiência.
Ao participar de muitos processos de inclusão infraestrutural, arquitetônico, atitudinal, comunicativo e digital, hoje, Bruno está voltado para a criação de projetos de experiência do cliente com necessidades especiais. O objetivo é entender e mapear toda a trajetória do cliente e identificar todas as barreiras de acessibilidade.
Nas próprias palavras do colaborador, a companhia ainda está longe de alcançar um padrão satisfatório de usabilidade. Nesse processo, Bruno destaca uma das últimas ações realizadas pela Gol - uma simulação de evacuação com um protocolo baseado nas pessoas com deficiência.
O voo em questão tinha cem passageiros, sendo que 35 deles apresentavam mobilidade reduzida, deficiência visual ou auditiva, neurodiverso ou algum outro impedimento.
A prática trouxe uma série de reflexões à companhia, como, por exemplo, a orientação correta a um deficiente visual se retirar com a bengala aberta ou fechada, o melhor deslocamento para pessoas com prótese e outras orientações para protocolos de emergência.
O presidente da ACSP, Roberto Mateus Ordine, e o coordenador do COCCID, Samir Nakhle Khoury, ressaltaram a preocupação da entidade em levar essa pauta ao comércio para tratar não apenas da inclusão social, mas também da inclusão profissional.